domingo, 9 de junho de 2013

Texto sintetizado da Introdução do livro A Água e os Sonhos – Ensaio sobre a imaginação da matéria de Gaston Bachelard. Tradução: Antonio de Pádua Danesi. “Não nos banhamos duas vezes no mesmo rio, porque, já em sua profundidade, o ser humano tem o destino da água que corre. A água é realmente o elemento transitório. A água é um ser em vertigem. Morre a cada minuto, alguma coisa de sua substância desmorona constantemente. A morte cotidiana não é a morte exuberante do fogo que perfura o céu com suas flechas; a morte cotidiana é a morte da água... Foi perto da água e de suas flores que melhor compreendi ser o devaneio um universo em emanação, um alento odorante que se evola das coisas pela mediação de um sonhador. Se quero estudar a vida das imagens da água, preciso, portanto, devolver ao rio e às fontes de minha terra seu papel principal. Nasci numa região de riachos e rios, num canto da Champagne povoado de várzeas, no Vallage, assim chamado por causa do grande número de seus vales. A mais bela das moradas estaria para mim na concavidade de um pequeno vale, às margens da água corrente, à sombra curta dos salgueiros e dos vimeiros. E, quando outubro chegasse, com suas brumas sobre o rio... Meu prazer é ainda acompanhar o riacho, caminhar ao longo das margens, no sentido certo, no sentido da água que corre, da água que leva a vida alhures, à povoação vizinha. Meu "alhures" não vai mais longe. Tinha quase trinta anos quando vi o Oceano pela primeira vez. (pausa) No tocante ao meu devaneio, não é o infinito que encontro nas águas, mas a profundidade... O Vallage tem dezoito léguas de comprimento e doze de largura. É, pois, um mundo. Não o conheço inteiro: não segui todos os seus rios. Mas a terra natal é menos uma extensão que uma matéria; é um granito ou uma terra, um vento ou uma seca, uma água ou uma luz. É nela que materializamos os nossos devaneios; é por ela que nosso sonho adquire sua exata substância; ... Sonhando perto do rio, consagrei minha imaginação à água, à água verde e clara, à água que enverdece os prados. Não posso sentar perto de um riacho sem cair num devaneio profundo, sem rever a minha ventura... Não é preciso que seja o riacho da nossa casa, a água da nossa casa. A água anônima sabe todos os segredos. A mesma lembrança sai de todas as fontes. (Oração) Conhecendo minha própria quantidade, • Sou eu, e puxo, e chamo todas as minhas raízes, o Ganges, o Mississípi, O espesso tufo do Orenoco, o longo fio do Reno, o Nilo com sua dupla bexiga... ' Assim vai a abundância... Nas lendas populares, inumeráveis são os rios que provêm da micção (urina) de um gigante... Se a água se torna preciosa, torna-se seminal. Então ela é cantada com mais mistério... Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver a noite. Para sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade. A água assim dinamizada é um embrião; dá à vida um impulso inesgotável. A água torna-se assim, pouco a pouco, uma contemplação que se aprofunda, um elemento da imaginação materializante. Noutras palavras, os poetas distraídos vivem como uma água anual, como uma água que vai da primavera ao inverno e que reflete facilmente, passivamente, levemente, todas as estações do ano. Mas o poeta mais profundo encontra a água viva, a água que renasce de si, a água que não muda, a água que marca com seu signo indelével as suas imagens, a água que é um órgão do mundo, um alimento dos fenômenos corredios, o elemento vegetante, o elemento lustrante, o corpo das lágrimas... Mas, repitamos, é permanecendo bastante tempo na superfície irisada que compreenderemos o preço da profundidade. Quando tivermos compreendido que toda combinação dos elementos materiais é, para o inconsciente, um casamento, poderemos perceber o caráter quase sempre feminino atribuído à água pela imaginação ingênua e pela imaginação poética. Veremos também a profunda maternidade das águas. A água faz incharem os vermes e jorrarem as fontes. A água é uma matéria que vemos nascer e crescer em toda parte. A fonte é um nascimento irresistível, um nascimento contínuo. Imagens tão grandiosas marcam para sempre o inconsciente que as ama. Suscitam devaneios sem fim. Mais que nenhum outro elemento talvez, a água é uma realidade poética completa. Uma poética da água, apesar da variedade de seus espetáculos, tem a garantia de uma unidade. A água deve sugerir ao poeta uma obrigação nova: a unidade de elemento. Na falta dessa unidade de elemento, a imaginação material não é satisfeita e a imaginação"formal não basta para ligar os traços díspares. A obra carece de vida porque carece de substância. Como a vida é um sonho dentro de um sonho, o universo é um reflexo dentro de um reflexo; o universo é uma imagem absoluta. Imobilizando a imagem do céu, o lago cria um céu em seu seio. A água, em sua jovem limpidez, é um céu invertido em que os astros adquirem uma nova vida. Onde está o real: no céu ou no fundo das águas? O infinito, em nossos sonhos, é tão profundo no firmamento quanto sob as ondas. Elas são como pontos de junção do sonho, que, por elas, muda de registro, muda de matéria. O sonho dá à água o sentido da mais longínqua pátria, de uma pátria celeste.” Gaston Bachelard nasceu em 27 de junho de 1884, em Bar-sur-Aube, França e faleceu a 16 de outubro de 1962, em Paris, França. Foi um filósofo e poeta francês que estudou sucessivamente as ciências e a filosofia. Seu pensamento está focado principalmente em questões referentes à filosofia da ciência.