Fazia uma manhã quente, deliciosa, de um céu limpo, sem nuvens a pairar na liberdade azul do firmamento. Os alunos procediam como era comum em todos os dias, uns chegavam mais cedo à faculdade, deixavam seu material na carteira de sempre, ponto referente às suas respectivas panelinhas nascidas em função de afinidade ou porventura de algum interesse mais profundo, na maioria dos casos, de natureza sexual. Comportamento, que por lógica, era bem mascarado pela indumentária carnavalesca das sutilezas proporcionadas naturalmente pelo ambiente universitário. Todavia, como grande parte dos pensamentos paridos em vida, mal passavam de uma guerra-fria, noutras palavras, planos bobos e fúteis que jamais sairiam do papel.
Dos que chegavam mais tarde, tendo já começado a aula, pertenciam a outras castas mais ou menos interessantes, relativamente, quem quer que respire, ande e fale, não pode fugir de um destes dois rótulos. Acredito que o mais correto seria classificar os retardatários pelo título de Oc1 e Oc2, os quais, diga-se de passagem, não correspondem a nenhum elemento da Escala Periódica, significando antes de mais nada, o grupo dos “ocupados” e dos “ociosos”. Não, que não existissem tais primores da sociedade também entre os modelos de pontualidade, contudo, na face dos atrasados, pintava-se com maior força a marca de suas classificações. Se por um lado, os ocupados chegavam com olheiras de sono pelo trabalho que os consumia, os ociosos, carregavam semelhantes marcas, que até podiam ser confundidas com as de uma dia incessante de labuta, mas bastava um minuto de conversa para conhecer em que tipo de grupo cada um se adequava, no segundo, o diálogo forçosamente penderia para festas, namoros e afins, nada realmente sério.
Para lá e para cá caminhavam os rostos de simpáticos estranhos, nem todos chegavam a se conhecer e mesmo os que se conheciam dificilmente empregavam alguma profundidade a camaradagem cotidiana, no entanto, a convivência continua invocava um peculiar clima de cumplicidade presente em todos, sem distinção.
Na praça de alimentação do campus, representava-se o maior de todos os espetáculos, um misterioso teatro sem fingimentos, onde cada qual interpretava a si mesmo. Não, não falo de mentiras ou omissões de caráter, muito pelo contrário. A encenação limitava-se ao fato de estarem todos em um ambiente neutro, repleto da diversidade humana, circunstancialmente barrados pela incapacidade de relacionarem-se com qualquer grau de intimidade que fosse além de uma vaga indiscrição, o que, quando ocorria, não era de todo mal encarado, no máximo, caracterizava uma ridicularidade sem fim, poucos se atreviam a ultrapassar os limites.
O primeiro tempo, como é de costume, convidou o corpo discente às suas respectivas salas de aula através do bater de um sino cuja estridência excedia os gritos de judeus condenados à câmara de gás na Alemanha nazista. Como diz a Bíblia, os mais obedientes seguiam rumo ao seu destino, constando no trecho: “como ovelha muda foi levado ao matadouro...” outros, porém, preferiam manter-se sossegados e gastar mais alguns minutos entre conversas, salgados, aspirações românticas, cigarros, rara vez por estudo e etc, atentando para outro versículo que dizia: “muitos serão chamados, mas poucos serão escolhidos”.
Aula por aula, diariamente alcançavam o intervalo, todos os dias, sem arranhões, fisicamente falando. O mundo era complicado, infeliz e ordinário, principalmente em seus setores mais banais; ou dependendo do ponto de vista, simples, feliz e extraordinário, variava bastante de acordo com o lado da cama que despertava o indivíduo. Em todos os viventes, a percepção pós-sono cumpria rigorosamente o papel de definir o quão calamitoso ou generoso podia ser o universo em derredor.
Foi justamente naquele intervalo, por volta das nove e pouco, que teve início o frenesi que marcaria para sempre a história de suas vidas.
Primeiro, veio correndo pelo corredor o estudante que gritava em alto e bom som, jurando ter visto os ratos que brotavam dos esgotos, primeiramente aos milhares, depois aos milhões, bueiros e tampões de asfalto rachavam à sua passagem. Houve quem correu em pânico para constatar a veracidade da informação e registrar em foto um evento tão absurdo. Os mais céticos detiveram-se sentados sem dar crédito aquelas palavras proferidas com tamanha ênfase. “É uma brincadeira, só pode ser”, comentava-se. Mas então vieram as abelhas, vistas à princípio somente por uma aluna distraída que subia as escadas, ela despencou de lá e rolou, por pouco não se ferindo gravemente, podendo ainda se levantar e gritar “abelhas, socorro!” assustando ao passo que alertava quem passava por perto. Outros correram e se jogaram ao chão cobertos de picadas, envolvidos por nuvens tão densas das mais variadas espécies de insetos capazes de causar algum tipo de dor.
Daí por diante o caos foi instituído de maneira generalizada. Pois que uns corriam de cangurus carnívoros e outros de aranhas gigantes com rosto humano. Alguns sucumbiam aos seus perseguidores e imploravam por ajuda entre tormentos dilacerantes. Macacos alados rasgavam o teto e entravam aos montes a pairar pelas cabeças dos fugitivos.
Bastaram cinco minutos de terror para que o gênero humano sucumbisse ao mais baixo grau instintivo de sobrevivência, de modo que para salvarem-se das bestas e dos monstros peçonhentos, muitos colegas usavam outros como escudo, derrubavam quem quer que estivesse mais próximo, no intuito de retardar o avanço de um predador em potencial, usando como artifício, o sacrifício de um semelhante.
O chão abriu-se em muitos lugares revelando abismos sem fundo, onde de quando em quando, precipitavam-se os que perdiam a esperança de encontrar a morte nos braços de uma velhice serena. Tantos eram os que ajoelhados puseram-se a rezar aguardando expirar pelas mandíbulas, garras ou ferrões das aterradoras criaturas, que ficou óbvio o quanto valia nascer em um pais culturalmente cristão, sendo estes estóicos abnegados, os primeiros a continuarem berrando após a mórbida precisão com um a um, todos iam sendo esquartejados, e mesmo aos pedaços, ainda que partidos ao meio, esmagados até o achatamento, perpassados por garras do tamanho de tacos de sinuca, e outras tantas atrocidades similares, não se via alguém morrer de fato. Apenas continuavam gritando e gritando e gritando.
Foi quando ouviu-se o ressoar de uma trombeta divinal, e os que continuavam de pé, inclusive os monstros, curvaram mediante a visão que lhes sobreveio. Joelho após joelho dobrou-se à passagem de três estranhos personagens que, revestidos de glória, entraram na faculdade pela porta da frente. Um deles era Jesus Cristo, bem caracterizado com sua barba longa, seu manto branco, olhos azuis e pele caucasiana, em sua versão mais Hollywoodiana de ser, seguido pela Virgem Maria, envolta com seu famoso manto azul, coroada para a assunção; o anjo segurando a trombeta, ostentava asas que lembravam vagamente um desfile da vitoria secret’s, caminharam os três pelo corredor e atravessaram os demais, todos sentiram-se inebriados pelo privilégio de presenciar tamanha graça, o fim era chegado, todos seriam julgados com igualdade e justiça. “Deus é socialista”, disse um certo professor prostrando-se à passagem das divinas personagens.
Eles caminharam por todo o campus sem serem incomodados, trazendo paz e sossego, fazendo sumir os demônios e deixando como rastro, um delicioso odor de rosas. Finalmente, sumiram no almoxarifado.
Demorou pouco para o frenesi fosse restituído.
Dentro do almoxarifado, os três alunos afrouxaram as vestes que os sufocavam, afinal, fazia um calor escaldante. Aquele a que se fantasiara de Cristo tomou da mão do que se aliviava das asas de anjo, um gravador, recostou-se de costas entre os braços de sua namorada, a virgem santa, apertou REC e começou a falar:
– A experiência correu como o esperado, uma vez que caem vítimas de um entorpecimento em massa, os seres humanos tendem ao terror e à selvageria coletiva. Os pavores de um, ao serem verbalizados, são transmitidos para o outro e traduzidos em forma de imagens que elevam seu grau de distorção à medida que passam de ouvido para ouvido. Uma espécie diabólica de telefone sem fio. Tal histeria frenética pode ser aplacada através da influência externa de um símbolo que cause sensação oposta, algo referente à segurança, à paz, enfim, ao “bem” maniqueísta, ou seja, qualquer figura convencional eleita que apresente significado sacro de acordo com a cultura vigente. – tendo terminado sua parte, Jesus entregou o gravador ao anjo e este continuou.
– A solução utilizada de seis litros de chá de zabumba em contato com o bebedouro pode atingir entre o inicio do primeiro tempo e o intervalo das aulas, cerca de sessenta e cinco por cento dos discentes. Especulamos que a não adulteração dos caldos, sulcos e cafés da cantina nos teria atrapalhado no objetivo de alcançar a marca extra de oitenta e nove por cento que constitui a estatísticas finais. Contraponto que reduziria o número de indivíduos afetados, colocando a perder a eficácia do experimento em sua totalidade. Em termos menos formais, um louco é apenas um louco; dois podem não passar de drogados; três, provavelmente são um bando de afrescalhados; de cinco à dez, temos um surto de histeria mínimo; de onze à cinqüenta, Mira & Lopes sem muros; de cinqüenta e um em diante, está instaurado nosso pequeno apocalipse universitário. – Imediatamente após ter encerrado seu comentário, o anjo repassou o gravador para as mãos de Maria que fechou com as últimas considerações.
Autor: Eugênio Gabriel Asa